Cazuza, vítima de uma reportagem
Há um episódio na biografia de Cazuza relacionado com Belém não reconstituído pelos pesquisadores que escreveram sobre o artista. Ocorreu antes da célebre entrevista concedida por ele à Marília Gabriela, durante a qual Cazuza admitiu publicamente que estava contaminado por AIDS. Naquele final dos anos de 1980, tal admissão se constituía numa atitude corajosa porque a doença ainda era cercada de muito preconceito.Por Oswaldo Coimbra (*)
Pouca gente sabe que antes da entrevista, num show em nossa capital, o cantor se feriu e começou a sangrar. Levado ao Incor, um hospital que já não existe mais, ele deixou impressionados e comovidos médicos e enfermeiras com sua preocupação em evitar o contato com o sangue dele, pois não queria que aqueles paraenses também se contaminassem. Estes profissionais de Belém puderam, assim, saber da doença de Cazuza, antes dos outros brasileiros.
Com cuidado semelhante o cantor não pôde contar quando, meses depois, num estágio já avançado da doença concordou em receber em seu apartamento os jornalistas da revista Veja. Àquela altura, ele se apegava à esperança de lançar um novo disco para não afundar no desânimo provocado por uma enfermidade ainda sem cura. E não resistiu à investida da revista que queria retratá-lo, feita através de uma ex-colega de sua mãe, Lucinha Araújo, a jornalista Ângela Abreu. Obtido o consentimento de Cazuza, Ângela compareceu ao encontro acompanhada de outro jornalista, a quem, de fato, Veja havia incumbido de produzir aquela matéria. Seu nome: Alessandro Porro.
A revista tampouco levou em conta os pedidos do pai do cantor, João Araújo, para que poupassem seu filho. Foi triplamente impiedosa. Do ponto de vista clínico, decretou a proximidade da morte do cantor já na manchete da capa da edição publicada no dia 26 de abril de 1989. “Cazuza, vítima da AIDS agoniza em praça pública”, noticiou Veja. No entanto, o cantor só viria a falecer um ano e dois meses depois. Do ponto de vista moral, Veja quase chegou a responsabilizá-lo por sua doença. Mostrou-o como um consumidor de drogas, de vida sexualmente promíscua. Embora os efeitos da AIDS, naquele período, fossem ampliados porque a Medicina ainda mal conhecesse a enfermidade. Do ponto de vista artístico, previu o esquecimento dele e de suas músicas, sustentando que Cazuza não tinha o talento de Noel Rosa, outro artista também abatido jovem, supostamente pela conjunção de vida desregrada com doença.
O efeito da impiedade de Veja foi devastador. Conta Lucinha Araújo, mãe do cantor, no livro “Cazuza, só as mães são felizes”: “Na tarde de domingo, estávamos tomando sol na piscina quando João chegou com sinais de preocupação no rosto e a revista nas mãos. Ele não sabia como entregá-la a Cazuza e sofreu muito ao perceber suas primeiras reações. Ao ver a Veja nas mãos do pai, meu filho a agarrou imediatamente e leu a reportagem inteirinha. Quando acabou, seus olhos estavam cheios de lágrimas: – Eu só não perdôo eles terem posto em dúvida a qualidade de meu trabalho!”
Lucinha prossegue: “Meu filho não agüentou. As lágrimas tristes se transformaram em choro convulsivo. A pressão baixou quase a zero. Não conseguimos controlar a crise em Petrópolis e decidimos levá-lo imediatamente para o Rio. Na estrada, com a enfermeira e Zélia, nossa caseira de Petrópolis, ao lado, Cazuza passou por momentos críticos. Meu desespero era tanto que temi por sua vida, imaginando que ele não resistisse às curvas da Rio-Petrópolis. Era uma hora da madrugada quando meu filho, já internado e medicado na Clínica São Vicente, saiu da crise e a pressão foi estabilizada.”.
No trecho que produziu maior dano em Cazuza, a matéria de Veja trouxe o seguinte: “Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no momento presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose em 1937,Noel Rosa tinha 26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada menos que 213 músicas, dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade”.
Aos 31 anos de idade, Cazuza tinha gravado 126 músicas. Outras 34, criadas por ele, haviam sido gravadas por seus colegas cantores. Sua produção ainda incluía 60 músicas, então, inéditas. Tudo isto, com apenas oito anos de carreira, lembrou Lucinha.
(*) Oswaldo Coimbra escreve, aos sábados, a coluna Saga Brasileira no caderno Você, do DIÁRIO.
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